segunda-feira, 26 de abril de 2010

Agostinho e a igualdade das pessoas divinas na Trindade (Parte 2)

* Trecho integral de "A Igualdade das Pessoas Divinas na Trindade no Pensamento de Agostinho e João Calvino", por Thiago Acquarone.

Em sua famosíssima obra “A Trindade”, Santo Agostinho descortina diante de nossos olhos, inúmeras abordagens das mais distintas facetas desta doutrina. No entanto o foco deste trabalho, conforme exposto previamente, é a igualdade entre as pessoas divinas na Trindade. Para tal, é imprescindível apresentar a maneira como este teólogo enxerga essas questões:

“Há falsas afirmações daqueles que, desprezando os princípios da fé, deixam-se enganar por um imaturo e desordenado amor pela razão. Há outros que pensam sobre Deus – se é que pensa alguma coisa – apoiados na natureza da alma humana ou em seus sentimentos. Há ainda uma terceira espécie de indivíduos, que se esforçam por transcender as coisas criadas, certamente mutáveis, para se aplicarem a substância imutável que é Deus. (...)Estão eles tão mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos não se apóiam nos sentidos corporais nem no espírito criado; nem no próprio Criador. Quem julga, por exemplo, que Deus é branco ou louro, engana-se, ainda que de qualquer maneira encontremos esses acidentes no corpo.”

Após essa afirmação tão clara de que o terreno onde estamos pisando ao mesmo tempo é seguro porque as Escrituras nos ensinam assim, mas não está aberto ao pleno perscrutar de nossa mente. Em outras palavras, é muito distante ontologicamente da nossa realidade como seres humanos porque não há criatura alguma que seja capaz de gerar a si mesma para existir.

“Com a finalidade de purificar o espírito humano de semelhantes erros, a santa Escritura, acomodando-se aos pequenos, não evitou expressões designando esse gênero de coisas temporais, mediante as quais nosso entendimento, como que alimentado, pudesse ascender por degraus, às coisas divinas e sublimes. Por isso, empregou palavras tomadas das coisas corporais ao falar de Deus como, por exemplo, quando diz: ‘Protege-me à sombra das suas asas’ (Salmo 16:8) (...) Com elementos próprios das criaturas, a Escritura divina costuma compor como que jogos infantis, com a intenção de que os sentimentos dos simples sejam estimulados, como que passo a passo, à procura das coisas superiores, no abandono das inferiores. (...) ‘O único que possui a imortalidade, o Senhor dos senhores. ’ (I Tm. 6:16) Visto que se diz a alma ser imortal, como de fato é, a Escritura não diria: ‘o único’, se a verdadeira imortalidade não fosse a imutável, da qual nenhuma criatura é dotada, já que essa imortalidade pertence somente ao Criador. (...) Desse modo torna-se difícil intuir e conhecer plenamente a substância de Deus, que faz as coisas mutáveis sem mudança em si mesmo, e cria as coisas temporais sem qualquer relação com o tempo.”

Agostinho cita teólogos aprovados pela tradição que o precedeu. Só devemos lembrar que o termo “católico” que aparece aqui não tem a mesma conotação pós-reforma (subordinado a igreja de Roma), mas sim o significado original de “universal”.

“Todos os comentadores católicos dos livros divinos do Antigo e do Novo Testamento, que tive oportunidade de ler e que me precederam com seus escritos sobre a Trindade, que é Deus, expuseram sua doutrina conforme as Escrituras nestes termos: o Pai, o Filho e o Espírito Santo perfazem uma unidade divina pela inseparável igualdade de uma única e mesma substância. Não são, portanto, três deuses, mas um só Deus, embora o Pai tenha gerado o Filho, e assim, o Filho não é o que é o Pai. O Filho foi gerado pelo Pai, e assim, o Pai não é o que o Filho é. E o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho, mas somente o Espírito do Pai e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e pertence à unidade da Trindade.”

Ao falar sobre a igualdade das pessoas, Agostinho como bom professor que era, não deixa de mencionar erros comuns em sua época como o modalismo e o patripassionismo .

“Contudo, a Trindade não nasceu da virgem Maria, nem foi crucificada sob Pôncio Pilatos, nem ressuscitou ao terceiro dia, nem subiu aos céus, mas somente o Filho. A Trindade não desceu sob a forma de pomba sobre Jesus batizado, nem no dia de Pentecostes depois da ascensão do Senhor, vindo do céu como um ruído semelhante ao soprar de um impetuoso vendaval, e, cem línguas de fogo, que vieram pousar sobre cada um deles; mas somente o Espírito Santo. A Trindade não fez ouvir do céu: ‘Tu és meu Filho’, quando Cristo foi batizado por João e no monte quando com ele estavam três discípulos; nem quando soou a voz que dizia: ’Eu o glorifiquei e o glorificarei novamente’; mas somente a voz do Pai foi dirigida ao Filho, se bem que o Pai e o Filho e o Espírito Santo, como são inseparáveis em si, são também inseparáveis em suas operações.”

Santo Agostinho no intuito de ser o mais didático possível, tratando deste tema de maneira clara, cita textos das Escrituras, pois sabe que sustentar uma doutrina apenas filosoficamente e não fundamentá-la com o texto bíblico irá gerar uma compreensão inadequada do que se pretende tratar.

“Toda a substância que não é Deus é criatura, e a que não é criatura, é Deus. E se o Filho não é consubstancial ao Pai, é uma substância criada; e se é uma substância criada, todas as coisas não foram feitas por Ele. Ora, está escrito: ’ tudo foi feito por Ele’; portanto, é consubstancial ao Pai. Assim, não é somente Deus, mas verdadeiro Deus. 1 Tm 6,14-16. Nessas palavras, não há menção propriamente dita do Pai nem do Filho nem do Espirito Santo, mas do bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o que corresponde ao único e verdadeiro Deus, a própria Trindade.”

As questões mais difíceis de conceituar e sistematizar no período da patrística foram as referentes ao aspecto cristológico. Por isso percebemos que Agostinho esmiúça este assunto ao máximo para que não haja confusão de termos e nem uma compreensão errônea. A heresia ariana é uma prova de que na tentativa de acertar, ou seja, provar o monoteísmo, alguns teólogos “escorregaram” em diminuir o Filho da sua posição consubstancial com o Pai. Um bom exemplo da apologética de Agostinho é a citação abaixo:

“Devido a encarnação do Verbo de Deus, realizada para a conquista de nossa salvação e para que Cristo Jesus se tornasse o mediador de Deus e dos homens (1Tm2, 5), muitas passagens dos livros santos insinuam e mesmo abertamente declaram, que o Pai é maior que o Filho. Daí os homens errarem pela descuidada investigação e pela falta de consulta a todo conjunto das Escrituras. E por isso, transferirem essas afirmações acerca de Cristo Jesus como homem, aplicando-as á sua substância, que era sempiterna, antes da encarnação – e que é sempre sempiterna. Dizem que o Filho é inferior ao Pai, porque está escrito e o disse o próprio Senhor: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28).


A verdade, porém, mostra que neste sentido o Filho é inferior a si mesmo. Como não há de ser inferior a si mesmo aquele que “esvaziou-se de si mesmo, e assumiu a condição de servo”? (Fl 2,7). Recebendo a forma de servo, não perdeu a forma de Deus, na qual era igual ao Pai. Portanto, revestido da forma de servo, não ficou privado da forma de Deus, pois, tanto na forma de servo, como na forma de Deus, ele é o Filho Unigênito de Deus Pai, igual ao Pai na forma de Deus, e mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus, na forma de servo.

Nesses termos, quem há que não compreenda que na forma de Deus, ele é superior a si mesmo e, na forma de servo, é também inferior a si mesmo? Por isso, a Escritura afirma, não sem razão, ambas as coisas, ou seja, que o Filho é igual ao Pai e o Pai é maior que o Filho. Não há, pois, lugar á confusão: é igual ao Pai pela forma de Deus, é inferior ao Pai pela forma de servo. (Fl 2,6-7).


O Filho de Deus é, portanto, igual ao Pai pela natureza, inferior pela condição exterior. Na forma de servo de que se revestiu, é inferior ao Pai; na forma de Deus que já possuía antes de assumir nossa condição, é igual ao Pai. Na forma de Deus, é o verbo pelo qual todas as coisas foram feitas (Jo 1,3); na forma de servo, “nasceu de mulher, sob o império da lei, para remir os que estavam sob a lei” (Gl 4,4-5). Consequentemente, na forma de Deus criou o homem, na forma de servo fez-se homem. Pois, se somente o Pai, sem o Filho, tivesse criado o homem, não estaria escrito: Façamos o homem á nossa imagem e semelhança (Gn 1,20).”

Complementando este argumento, Agostinho resume as colocações anteriores de modo a manter claras ao mesmo tempo a igualdade das pessoas divinas na Trindade sem perder de vista a economia trinitária, ou seja, que são três pessoas distintas com funções diferentes mas no entanto são o mesmo e único Deus.

“Esta é a norma para compreensão das Escrituras no tocante ao Filho: distinguir o que elas dão a entender conforme a sua condição de Deus, na qual é igual ao Pai; e o que declaram conforme a sua condição de servo, na qual é inferior ao Pai.

Na forma de Deus, é igual ao Pai e ao Espírito Santo, pois nenhuma das pessoas é criatura, como já demonstramos; na condição de servo, é inferior ao Pai, pois ele afirmou: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). É inferior também a si mesmo, pois dele esta escrito: Aniquilou-se a si mesmo (Fl 2,7); inferior ainda ao Espírito Santo conforme disse: (Mt 12,32). E ele exercita seus poderes em nome do Espírito Santo, de acordo com a afirmação: ‘Contudo se é pelo Espírito de Deus, que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós’ (Lc 11,20). Daí, o Senhor dizer: ‘se amásseis, alegrar-vos-íeis por eu ir para o Pai, porque o Pai é maior do que eu’ (Jo 14,28). Quis dar a entender: é preciso que eu vá para o Pai, porque, vendo-me assim e julgando pelo que aparece, pensais que sou menor que o Pai; e atentos ao aspecto de criatura e á condição assumida, não chegais a compreender a igualdade que existe entre mim e o Pai.

Na forma de Deus, criou todas as coisas (Jo 1,3); na condição de servo, nasceu de uma mulher, sob Lei (Gl 4,4). Na forma de Deus, ele e o Pai são um (Jo 10,30); na condição de servo, não veio para fazer sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou (Jo 6,38). Na forma de Deus: ‘assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo’ (Jo 5,26); na condição de servo: ‘minha alma esta triste até a morte’, e: ‘Pai se é possível, que passe de mim este cálice’ (Mt 26, 38.39). Na forma de Deus: ‘este é o Deus verdadeiro e a vida eterna’ (1Jo 5,20); na condição de servo: ‘foi obediente até a morte, e morte de cruz.’ (Fl 2,8)”

O estudo da doutrina da Trindade apresenta dificuldades inerentes a nossa natureza pecaminosa, finitude e limitações intelectuais. Tais fatos foram levados em consideração por Agostinho quando ele afirma que

“Quando os homens investigam sobre Deus e aplicam-se á compreensão da Trindade, dentro das limitações humanas, experimentam sérias dificuldades, seja por causa do olhar da mente que empreende a penetração de luz inacessível, seja devido aos muitos e variados modos de expressão das Escrituras Sagradas, perante pela graça de Cristo. As quais a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que possa brilhar iluminada.”
O Credo de Nicéia, importante documento utilizado por toda a cristandade desde que foi elaborado no quarto século, também é alvo dos comentários dele. Nesse trecho pode-se perceber que, por mais que o credo seja detalhado, Agostinho acrescenta pontos importantes para análise dos termos: gerar e o proceder.

“Dizemos, com efeito, que o Filho é Deus de Deus, mas dizemos que o Pai é simplesmente Deus, e não Deus de Deus. Está claro, portanto, que o Filho tem alguém de quem procede e do qual proceda, mas apenas do qual é Pai. Todo filho recebe do pai o ser, e é filho com relação a seu pai; nenhum pai recebe do filho o ser, mas é pai com relação ao filho. Há, com efeito, passagens nas Escrituras sobre o Pai e o Filho que revelam a sua unidade e igualdade de essência, como: (Jo 10,30); (Fl 2,6); (Jo 14,28); (Jo 5,22). Outras passagens, no entanto, não revelam nem a inferioridade nem a igualdade, mas apenas afirmam sua procedência do Pai: (Jo 5,26); (Jo 5,19).


Resta, portanto, admitir que o Senhor assim afirmou, para significar que a vida do Filho é imutável como a do Pai, mas que o Filho é do Pai; e que há inseparabilidade de operações entre o Pai e o Filho. Mas a atuação do Filho é daquele de quem possuir o ser, isto é, do Pai; e de tal modo o Filho vê o Pai, que pelo fato de vê-lo, por isso mesmo, é Filho. Não há diferença entre o ser do pai, isto é, nascer do Pai e ver o Pai, ou ver o Pai atuar, atuando junto com o Pai; mas por si mesmo, pois, não se gerou a si mesmo. Portanto, aquilo que vir o Pai fazer, isso o faz também o Filho (Jo 5,19) significa que é do Pai.


Ao dizer tudo e igualmente, indica a inseparabilidade e a igualdade de operação entre o Pai e o Filho, mas é do Pai que recebe sua ação. Eis por que o Filho nada fazer por si mesmo, a não ser o que vê o Pai fazer.”

Após ter apresentado a posição de Agostinho concernente ao Filho, passo a demonstrar seus escritos sobre a igualdade do Espírito Santo. Nosso teólogo passa a diferenciar a posição do Espírito na economia da Trindade, bem como sua igualdade ontológica às demais pessoas da Trindade.

“ Sobre o Espírito Santo, do qual não está dito: esvaziou-se de si mesmo e assumiu a condição de servo, diz o próprio Senhor: Quando vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá á verdade plena, pois não falara de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. Ele me glorificará porque receberá do que é meu e vos anunciará (Jo 16, 13.14). Poder-se-ia pensar que talvez, o Espírito Santo seja nascido de Cristo, como este o é do Pai. Com efeito, falando de si mesmo dissera ele: Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou (Jo 7,16). Do Espírito santo, porém, diz: não falará de si mesmo, mas dirá tudo que tiver ouvido e: porque receberá do que é meu, e vos anunciará (Jo 16,13). Apresentou, contudo, a razão da assertiva: receberá do que é meu, ao dizer: tudo o que o Pai tem é meu; por isso vo-lo disse: ele receberá de mim (Jo 16,15).


Resta-nos agora provar como o Espírito Santo também recebeu tudo do Pai, tal como o filho. O processo, conforme dissemos, deve ser mediante a reflexão sobre a sentença: Quando vier o Paráclito que vos enviarei de junto do Pai, o Espírito da verdade que vem do Pai, ele dará testemunho de mim (Jo 15,26). Como procede do Pai, diz-se que não fala de si mesmo, e assim como o filho, não é inferior por ter dito: o Filho por si mesmo nada pode fazer, mas somente aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5,19). Não disse estas palavras tendo em conta a forma de servo, mas a forma de Deus, como já demonstra. Elas não insinuam que seja inferior, mas que procede do pai. Do mesmo modo, não se infere que o Espírito Santo seja inferior, pelo fato de Cristo dizer: Não falará de si mesmo, mas dirá tudo que tiver ouvido (Jo 16,13). Esta sentença indica apenas que o Espírito Santo procede do Pai.”

Temos de ser prudentes ao tentar especular sobre essa doutrina além do que está disponível nas Escrituras, pois Deus é maior do que a nossa teologia. Agostinho, ciente desse perigo que incorremos, alerta-nos a não

“incorrer em erro ao pensar que o Espírito Santo é superior aos dois, porque glorifica o Filho, a quem o Pai glorifica, pelo fato de não se encontrar nenhuma citação onde o Espírito Santo seja glorificado nem pelo Pai nem pelo Filho. Além disso, na suprema Trindade que é Deus não há intervalos de tempo que permitam mostrar, ou pelo menos investigar, se o Filho teria nascido do Pai antes do Espírito Santo e em seguida, de ambos tenha procedido o mesmo Espírito Santo. Pois a escritura santa o denomina Espírito do Pai e do Filho. Ele é, com efeito, aquele do qual fala o apóstolo: ‘e porque sois filhos, enviou Deus em nossos corações o Espírito do seu Filho’ (Gl 4,6). E é dele que fala o próprio Senhor: ‘Não sereis vós que estareis falando naquela hora, mas o Espírito de vosso Pai é que falará em vós’ (Mt 10, 20). E com muitos outros testemunhos da Palavra de Deus se comprova que ele é Espírito do Pai e do Filho, e denomina-se por apropriação, na Trindade, Espírito Santo, sobre o qual diz o próprio Filho: ‘que eu vos enviarei do pai’ (Jo 15,26); e em outra parte: ‘que o Pai vos enviará em meu nome’ (Jo 14,26).


A procedência de ambos é ainda afirmada pelo próprio Filho que diz: o Espírito que procede do pai (Jo 15,26). Depois da ressurreição dentre os mortos, aparecendo a seus discípulos, soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo (Jo 20,22), mostrando que também dele procedera. E esta é aquela força que dele saía, como se lê no Evangelho, e a todos curava (Lc 6,19).”

Após lermos todas essas colocações deste notável pai da Igreja, passaremos a contrastar suas opiniões com o mais importante sistematizador da fé reformada, João Calvino.

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